Talvez já te não lembres, triste Helena,
Dos passeios que dávamos sozinhos,
À tardinha, naquela terra amena,
No tempo da colheita dos bons vinhos.
Talvez já te não lembres, pesarosa,
Da casinha caiada em que moramos,
Nem do adro da ermida silenciosa,
Onde nós tantas vezes conversamos.
Talvez já te esquecesses, ó bonina,
Que viveste no campo só comigo,
Que te osculei a boca purpurina,
E que fui o teu sol e o teu abrigo.
Que fugiste comigo da Babel,
Mulher como não há nem na Circássia,
Que bebemos, nós dois, do mesmo fel,
E regamos com prantos uma acácia.
Talvez já te não lembres com desgosto
Daquelas brancas noites de mistério,
Em que a Lua sorria no teu rosto
E nas lajes campais do cemitério.
Talvez já se apagassem as miragens
Do tempo em que eu vivia nos teus seios,
Quando as aves cantando entre as ramagens
O teu nome diziam nos gorjeios.
Quando, à brisa outoniça, como um manto,
Os teus cabelos de âmbar, desmanchados,
Se prendiam nas folhas dum acanto,
Ou nos bicos agrestes dos silvados.
E eu ia desprendê-los, como um pajem
Que a cauda solevasse aos teus vestidos,
E ouvia murmurar à doce aragem
Uns delírios de amor, entristecidos.
Quando eu via, invejoso, mas sem queixas,
Pousarem 'borboletas doidejantes
Nas tuas formosíssimas madeixas,
Daquela cor das messes lourejantes.
E no pomar, nós dois, ombro com ombro,
Caminhávamos sós e de mãos dadas,
Beijando os nossos rostos sem assombro,
E colorindo as faces desbotadas.
Quando Helena, bebíamos, curvados,
As águas nos ribeiros remansosos,
E, nas sombras, olhando os céus amados
Contávamos os astros luminosos.
Quando, uma noite, em êxtases caímos
Ao sentir o chorar dalgumas fontes,
E os cânticos das rãs que sobre os limos
Quebravam a solidão dos altos montes.
E assentados nos rudes escabelos,
Sob os arcos de murta e sobre as relvas,
Longamente sonhamos sonhos belos,
Sentindo a fresquidão das verdes selvas.
Quando ao nascer da aurora, unidos ambos
Num amor grande como um mar sem praias
Ouvíamos os meigos ditirambos
Que os rouxinóis teciam nas olaias.
E, afastados da aldeia e dos casais,
Eu contigo, abraçado como as heras,
Escondidos nas ondas dos trigais.
Devolvia-te os beijos que me deras.
Quando, se havia lama no caminho,
Eu te levava ao colo sobre a greda,
E o teu corpo nevado como arminho
Pesava menos que um papel de seda.
Talvez já te esquecesses dos poemetos,
Revoltos como os bailes do Cassino,
E daqueles byrônicos sonetos
Que eu gravei no teu peito alabastrino.
De tudo certamente te esqueceste,
Porque tudo no mundo morre e muda,
E agora és triste e só como um cipreste,
E como a campa jazes fria e muda.
Esqueceste-te, sim, meu sonho querido,
Que o nosso belo e lúcido passado
Foi um único abraço comprimido,
Foi um beijo, por meses, prolongado.
E foste sepultar-te, ó serafim,
No claustro das Fiéis emparedadas,
Escondeste o teu rosto de marfim
No véu negro das freiras resignadas.
E eu passo tão calado como a Morte
Nesta velha cidade tão sombria,
Chorando aflitamente a minha sorte
E prelibando o cálix da agonia,
E, tristíssima Helena, com verdade,
Se pudera na terra achar suplícios,
Eu também me faria gordo frade
E cobriria a carne de cilícios.
Análise
O tema deste poema pertence á primeira fase poética de Cesário verde, ou seja, a crise romanesca, que se estabelece no sujeito poético. O sujeito lírico começa por se dirigir a um "tu", á mulher amada por que se sente apaixonado e feliz quando o seu amor tem por cenário o campo. Alterando-se quando a cidade faz parte da realidade, dando origem á tristeza e á infelicidade. O campo é, com efeito, símbolo do amor e da infelicidade do passado entre o "eu" e o "tu", sendo visível no poema até á estrofe 10. Contudo, a partir da 11ª estrofe até á 13ª as palavras do poeta revelam-nos tristeza e infelicidade. A cidade é agora o cenário de fundo e o símbolo da infelicidade existente. Existe uma dicotomia entre a cidade e o campo, pois a cidade para o poeta significa a morte e para a mulher amada o convento. É a sepultura, enquanto que o campo se revelou a alegria de viver deste casal.
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